domingo, 7 de março de 2010

Trecho - Antes de Morrer




(...) Pego meu casaco do gancho onde fica pendurado e saio para o jardim. O frio me causa um choque. Acende meus pulmões, transforma minha respiração em fumaça. Subo o capuz, aperto bem o cadarço debaixo do queixo e espero.
Lentamente, como se estivesse saindo da bruma, tudo no jardim vai entrando em foco: o arbusto de azevinha roçando o barracão, um passarinho empoleirado na estaca da cerca, com as penas se eriçando ao vento.

Dentro de casa, devem estar embaralhado as cartas e passando os amendoins, mas aqui fora cada haste de grama cintila, endurecida de gelo. Aqui fora o céu está repleto de estrelas, como uma cena de conto de fadas. Até mesmo a Lua parece enfeitiçada.
Amasso galhos e folhas com minhas botas a caminho da macieira. Toco as ranhuras do tronco, tentando sentir através dos dedos sua cor cinzenta de ardósia. Algumas folhas pendem dos galhos, úmidas. Um punhado de maçãs ressequidas vai se transformando em ferrugem.

Cal diz que os seres humanos são feitos das cinzas do núcleo de estrelas mortas. Segundo ele, quando eu morrer, tornarei a virar pó, luz cintilante, chuva. Se for verdade, quero ser enterrada bem aqui, debaixo desta árvore. Suas raízes vão penetrar a matéria macia do meu corpo até eu ficar totalmente seca. Renascerei como broto de maçã. Na primavera, despencarei até o chão como confetes, e grudarei nos sapatos da minha família. Eles me carregarão no bolso, me espalharão, em forma de seda sutil, nos travesseiros para ajudá-los a dormir. Então, que sonhos terão?

No verão, eles me comerão. Adam pulará a cerca para me roubar, enlouquecido com meu aroma, minha robustez, com o brilho e a saúde que irradio. Pedirá à mãe que me use para preparar um crumble ou um strudel, e se fartará de mim.


Deito-me no chão e tento imaginar isso. Mesmo, mesmo. Estou morta. Estou me transformando em macieira. Mas é meio difícil. Imagino o passarinho que vi mais cedo, se ele saiu voando. Imagino o que estarão fazendo lá dentro, se já sentiram a minha falta.
Viro-me e pressiono o rosto contra a grama; ela pressiona de volta, fria. Corro as mãos pela grama, aproximo os dedos do nariz para sentir o cheiro de terra. Cheiro de mofo de folhas, hálito de minhoca. (...)


(Antes de Morrer - Jenny Downham)

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